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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O LIVRO DOS MORTOS II

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Durante o Império Novo (c. de 1550 a 1070 a.C.) a maior parte das fórmulas dos textos dos sarcófagos, acrescidas de diversas estrofes novas, passaram a ser escritas em rolos de papiro, os quais eram colocados nos ataúdes ou em algum local da câmara sepulcral, geralmente em um nicho cavado com essa finalidade. Quando postos no sarcófago costumavam ser encaixados entre as pernas dos corpos, logo acima dos tornozelos ou perto da parte superior das coxas, antes de serem passadas as bandagens. Tais textos, que formam um conjunto com cerca de 200 estrofes referentes ao mundo do além-túmulo, ilustrados com desenhos para ajudar o defunto na sua viagem para a eternidade, foram intitulados pelos modernos arqueólogos de Livro dos Mortos. Entretanto, conforme explica o especialista em história antiga, A. Abu Bakr, esse título é até certo ponto enganoso: na verdade, nunca existiu um &quotlivro" desse gênero; a escolha das estrofes escritas em cada papiro variava segundo o tamanho do rolo, a preferência do adquirente e a opinião do sacerdote-escriba que as transcrevia. Um &quotLivro dos Mortos" médio continha entre 40 e 50 estrofes.

Para os egípcios esse conjunto de textos era considerado como obra do deus Thoth. As fórmulas contidas nesses escritos podiam garantir ao morto uma viagem tranquila para o paraíso e, como estavam grafadas sobre um material de baixo custo, permitiam que qualquer pessoa tivesse acesso a uma terra bem-aventurada, o que antes só estava ao alcance do rei e da nobreza. Em verdade, essa compilação de textos era intitulada pelos egípcios de Capítulos do Sair à Luz ou Fórmulas para Voltar à Luz (Reu nu pert em hru), o que por si só já indica o espírito que presidia a reunião dos escritos, ainda que desordenados. Era objetivo desse compêndio, nos ensina o historiador Maurice Crouzet, fornecer ao defunto todas as indicações necessárias para triunfar das inúmeras armadilhas materiais ou espirituais que o esperavam na rota do &quotocidente".

As cenas do julgamento do falecido fazem parte daquela rota e, portanto, de tais papiros.

A decisão era tomada no Saguão das Duas Verdades, um grande salão no qual ficava uma grande balança destinada a pesar o coração do morto. A solenidade é assim resumida pelo egiptólogo Kurt Lange: Osíris, senhor da eternidade, está sentado como um rei no seu trono. Tem em suas mãos o cetro e o leque. Por trás dele, mantêm-se habitualmente suas irmãs Ísis e Néftis. Na outra extremidade, vê-se a deusa da justiça, Maat, introduzir o morto ou a morta. No meio do quadro está desenhada a grande balança em que o peso do coração é comparado ao duma pluma de avestruz, símbolo da verdade. A pesagem é confiada a Hórus e ao guardião das múmias, de cabeça de chacal, Anúbis. O deus Thoth, de cabeça de íbis, senhor da sabedoria e da escrita, anota o resultado da pesagem sobre um papiro, por meio de um cálamo. Quarenta e dois juízes — correspondendo às Foto © Canadian Museum of Civilization Corporation quarenta e duas províncias do Egito — assistem à operação. Diante desse tribunal é que o candidato à eternidade deve fazer as declarações nas quais afirma nunca se ter tornado culpado de certo número de faltas para com seus semelhantes, para com os deuses, para com sua própria pessoa e o bem alheio. Se a sentença dos juízes fosse favorável ao morto, Hórus tomava-o pela mão e o conduzia ao trono de Osíris, que lhe indicava seu lugar no reino do além. Essa é a cena que vemos na ilustração do alto da página. Ela pertence ao Livro dos Mortos de Hunefer, obra originária de Tebas e datada da XIX dinastia (c. 1307 a 1196 a.C.). Caso contrário, o morto estaria cheio de pecados e, então, seria comido por um terrível monstro, Ammut, o devorador dos mortos, que vemos na ilustração acima ao lado de Anúbis.

A idéia central do Livro dos Mortos é o respeito à verdade e à justiça, mostrando o elevado ideal da sociedade egípcia. Era crença geral que diante de Osíris de nada valeriam as riquezas, nem a posição social do falecido, mas que apenas seus atos seriam levados em conta. Foi justamente no Egito que esse enfoque de que a sorte dos mortos dependia do valor de sua conduta moral enquanto vivo ocorreu pela primeira vez na história da humanidade. Mil anos mais tarde, — diz Kurt Lange — essa idéia altamente moral não se espalhara ainda por nenhum dos povos civilizados que conhecemos. Em Babilônia, como entre os hebreus, os bons e os maus eram vítimas no além, e sem discernimento, das mesmas vicissitudes.

Não resta dúvida de que o julgamento de seus atos após a morte devia preocupar, e muito, a maioria dos egípcios, religiosos que eram. Mas — pondera Crouzet — a provação era de tal espécie, que podia ser sobrepujada por uma memória eficaz, ajudada pelo papiro colocado junto ao cadáver, que possibilitaria ao defunto enunciar certas sentenças soberanas. Como afastar a palavra &quotmagia", e negar que o emprego destas fórmulas era considerado suficiente para apagar os erros da vida terrena? É claro que o crente era convidado a não cometê-los: seria a melhor maneira de garantir a sua salvação futura. Mas nenhuma reserva, em parte alguma, limitava a eficácia das receitas de que tratava de munir-se, desde que fosse obstinado, embora culpado.

É preciso que se diga que embora o Livro dos Mortos tenha aparecido grafado em papiros apenas a partir do Império Novo, sua origem é muito mais antiga, anterior até mesmo ao período dinástico. Inicialmente, contando apenas com poucas estrofes relativamente simples, adequadas aos costumes de uma época remota, seu conteúdo era transmitido de forma oral. Com o aumento da quantidade e da complexidade dos textos, os sacerdotes se viram obrigados a escrevê-los antes que se perdessem da memória dos fiéis. Num processo de cópias sucessivas foram introduzidas variações e enganos, tanto por equívoco na leitura dos caracteres quanto por desleixo, cansaço do copista e acréscimos feitos pelo próprio escriba interessado em impor sua opinião. A cópia mais antiga encontrada foi escrita para Nu, filho do intendente da casa do intendente do selo, Amen-hetep, e da dona de casa, Senseneb. Esse valioso documento, avaliam os arqueólogos, não pode ser posterior ao início da XVIII dinastia (c. de 1550 a.C.). Ele faz referência a datas dos textos que transcreve e uma delas se refere aos idos de um dos faraós da I dinastia (c. de 2920 a 2770 a.C.).

Foi nos sepulcros de Tebas que os pesquisadores encontraram a maior parte das cópias do Livro dos Mortos. Em tais papiros os comprimentos variam entre 4,57 e 27,43 metros e a largura entre 30,48 e 45,72 centímetros. No início do Império Novo os textos são sempre escritos com tinta preta e os hieróglifos dispostos em colunas verticais, separadas entre si por linhas pretas. Títulos, palavras iniciais dos capítulos, rubricas e chamadas são grafadas com tinta vermelha. Os escribas também enfeitavam os papiros com vinhetas de traços pretos, às vezes copiadas de ataúdes e documentos de dinastias bem anteriores como a XI (c. de 2134 a 1991 a.C), por exemplo. A partir da XIX dinastia (c. de 1307 a 1196 a.C.) as vinhetas passaram a ser pintadas com cores muito brilhantes e cresceram de importância, ao passo que o texto passou a ocupar uma posição secundária. Um dos mais belos papiros ilustrados que existem é o assim chamado Papiro de Ani, cujas vinhetas representam cenas mitológicas, nomes de deuses e cenas do julgamento dos mortos.

No decorrer da XXI e da XXII dinastias (c. de 1070 a 712 a.C.) houve deterioração do trabalho de escribas e desenhistas e a qualidade do mesmo diminuiu sensivelmente, além de ter havido alterações no conteúdo dos textos. Outros temas não relacionados com o mundo dos mortos, como a criação do mundo, por exemplo, foram incluídos nos papiros dessa época. Às vezes o texto nada tem a ver com a vinheta que o acompanha. Nesse período também se estabeleceu o costume de encher com os papiros figuras ocas de madeira do deus Osíris, as quais eram colocadas nos túmulos. Quando os papiros diminuíram de tamanho, passaram a ser armazenados em cavidades menores nas bases de tais figuras. Do final da XXII dinastia em diante, até o início da XXVI dinastia (664 a.C.) ocorreu um período de desordem e tumulto. Os sacerdotes perderam gradualmente o seu poder religoso e temporal e a crise provocou redução das despesas com cerimônias funerárias, tendo caído em desuso o costume de se fazer cópias do Livro dos Mortos.

Quando os faraós da XXVI dinastia assumiram o poder houve uma renovação dos antigos costumes mortuários, templos foram restaurados e textos antigos esquecidos foram relembrados e novamente copiados. No que se refere ao Livro dos Mortos tais cópias passaram a ser feitas de forma sistemática. Os capítulos passaram a ter uma ordem fixa, mantidos na mesma ordem relativa nos diversos papiros, ainda que alguns contivessem mais texto do que os outros, e quatro capítulos novos foram acrescentados, refletindo as novas idéias religiosas da época. Esses escritos continuaram a ser usados durante o período ptolomaico (304 a 30 a.C.). Nessa época, porém, só eram grafados os textos que se acreditava absolutamente necessários à salvação do morto. Textos que refletiam uma mitologia há muito esquecida eram ignorados.

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